REPARACAO TECIDUAL



       A compreensão do processo de reparação tecidual tem aumentado dramaticamente na última década. Aproxima-se uma época na qual o controle das complexas interações entre as células, a matriz e os fatores de crescimento será corriqueiro na prática clínica. Identificam-se três fases no processo da cicatrização, a inflamatória ou inicial, a proliferativa ou de fibroplasia, e a maturação ou remodelação. Estas fases são separadas apenas didaticamente, ocorrendo na realidade superposição e transição contínua e gradual de uma fase para outra.
       A fase inflamatória inicia-se imediatamente após a lesão, e envolve fenômenos vasculares, coagulação sangüínea, migração de células inflamatórias e liberação de fatores de crescimento. Há duas categorias de fatores de crescimento, os quimiotáticos e os hormonais. O fator de crescimento derivado de plaquetas (PDGF - “platelet derived growth factor”), por exemplo, é um fator quimiotático que atrai fibroblastos e células musculares lisas para o local de agregação plaquetária. Os chamados “hormônios das feridas” incluem o TGF-β, que estimula angiogênese, atrai fibroblastos e estimula a produção de colágeno.
       A fase de fibroplasia é caracterizada pela formação do tecido de granulação e pela contração tecidual. O tecido de granulação é formado na área de lesão a partir do 4º dia, e contém numerosos capilares neo-formados, macrófagos, fibroblastos e matriz extracelular. Inicialmente, os fibroblastos produzem fibronectina e colágeno tipos I, III, V e VI. A fibronectina é uma glicoproteína secretada em associação à fibrina que serve de substrato para a migração celular e a fibrilogênese do colágeno, e como sítio de ligação para os miofibroblastos exercerem a contração tecidual. O ácido hialurônico é encontrado em grande quantidade; proporciona hidratação à matriz assegurando a fácil penetração das novas células parenquimatosas. O colágeno tipo V, abundante no tecido de granulação, apresenta relação proporcional à vascularização tecidual e às células endoteliais. É encontrado em grande quantidade em cicatrizes hipertróficas.
       Gradualmente passa-se à remodelação desta matriz por meio da contração tecidual, processo biológico que diminui a dimensão dos tecidos conectivos envolvidos na lesão. O processo de contração pode levar a graves contraturas funcionais e seqüelas estéticas no caso de queimaduras. Já em 1944, CONVERSE; ROBB-SMITH observaram que a intensidade da contração é proporcional ao tempo necessário para a epitelização. Uma semana após a lesão, os fibroblastos diferenciam-se em miofibroblastos e já preenchem toda a ferida, apresentando ligações entre si e com a matriz. A descoberta dos miofibroblastos, células mesenquimais especializadas, deu-se em 1971 e representou um avanço na compreensão da contração da ferida. Apresentam retículo endoplasmático bem desenvolvido e várias características de células musculares lisas, tais como morfologia sugestiva de contração celular, com grande quantidade de feixes de microfilamentos intra-citoplasmáticos, conexões entre a célula e o estroma e denteações nucleares. Muitos autores acreditam que a contração tecidual seja um processo inteiramente celular, independente da síntese ou deposição de colágeno. Por outro lado, o colágeno fornece a força tênsil para manutenção da contratura ocorrida.
       A partir do 10º dia vários fibroblastos e células endoteliais evoluem com picnose nuclear, marcador que sugere morte celular programada, achado coerente com o aspecto final relativamente acelular da cicatriz. O fenômeno da fibroplasia na reparação tecidual tem, portanto, controle rígido, e a quebra desta regulação é observada em patologias como a cicatrização hipertrófica.
       A terceira fase da reparação tecidual compreende a remodelação da matriz. Com a maturação da mesma, a fibronectina e o ácido hialurônico diminuem, os feixes de colágeno e a força tênsil aumentam, e proteoglicanas são depositadas aumentando a elasticidade frente a deformações. As glicosaminoglicanas sulfato de condroitina e sulfato de dermatana, componentes das proteoglicanas decorina, biglicana e versicana, aumentam a partir da segunda semana de lesão. A remodelação do colágeno compreende síntese continuada e catabolismo. A degradação do colágeno é controlada por variadas enzimas denominadas colagenases, derivadas de granulócitos, macrófagos, células epidérmicas e fibroblastos. Até o final de terceira semana sítios de reparação apresentam cerca de 20% da força tênsil final. Até a oitava semana a taxa de aumento da mesma é lenta e progressiva, refletindo o estabelecimento de ligações cruzadas entre as moléculas de colágeno.
       A super-família de moléculas do colágeno está envolvida nas fases inflamatória, proliferativa e de remodelação da resposta cicatricial da pele humana. São descritos dezenove isotipos de colágeno geneticamente distintos; destes, os tipos I, III, IV, V, VI, VII, XII, XIV e XVII foram detectados na pele humana. Cicatrizes representam a fase final da resolução de lesões cutâneas, nas quais a matriz colágena sintetizada rapidamente é re-organizada em uma matriz densa e relativamente acelular que restaura a integridade da pele e parcialmente a força tênsil. A cicatrização ou reparação tecidual é um processo dinâmico, caracterizado por síntese e degradação de matriz por períodos prolongados.
       Em relação à epiderme, lesões de espessura dérmica parcial re-epitelizam espontaneamente em semanas pela migração de queratinócitos provenientes das margens da lesão ou dos anexos cutâneos remanescentes localizados abaixo do plano da lesão, na derme reticular ou no subcutâneo. Como fonte de epitélio, os anexos mais importantes são os folículos pilosos, seguidos pelas glândulas sebáceas e em menor grau, pelas sudoríparas. Na presença da lesão cutânea, as células epiteliais desdiferenciam-se, sofrem mitoses e migram, até encontrarem uma célula similar, ocorrendo então adesão entre as mesmas e reversão do processo devido ao fenômeno denominado “inibição por contato”. Iniciam então intensa proliferação e diferenciação, em movimento vertical. Quando a epitelização ocorre sobre lesões de espessura total, com ausência total de derme, não resulta em tegumento eficiente, oferecendo pouca resistência mecânica.
       Enxertos de espessura parcial em malha também epitelizam com a migração dos queratinócitos do enxerto sobre os interstícios. Estes queratinócitos têm sua morfologia alterada, com retração dos filamentos de queratina intra-celulares, dissolução dos desmossomos e formação de filamentos periféricos de actina a fim de aumentar a mobilidade. Acredita-se que o movimento lateral dos queratinócitos é estimulado pelo contato com elementos da matriz de tecido conectivo da lesão, enquanto o movimento vertical dos mesmos seja estimulado pelo contato com célula semelhante ou com a membrana basal. A função de barreira protetora da epiderme relaciona-se com sua organização em estratos de células diferenciadas progressivamente. A ausência do estrato córneo, a camada mais externa, está associada a aumento da perda trans-epidérmica de água. Os queratinócitos envolvidos na migração lateral perdem a capacidade plena de organização e não formam células granulares diferenciadas, ou células corneificadas. Para a adesão firme da epiderme neo-formada ao tecido conectivo, elementos da membrana basal devem também ser restaurados, processo que se inicia pelas bordas da lesão e somente se completa após alguns meses. Neste período, o tegumento pós-queimadura tem tendência à formação de bolhas ou erosões após mínimos traumas mecânicos, refletindo a fragilidade do epitélio. O padrão normal de interdigitação dermo-epidérmica, também responsável por maior adesão, encontra-se retificado no tegumento pós-queimadura. Estudos de imunofluorescência da zona de reconstituição da membrana basal detectam progressivamente laminina, fibronectina e colágeno tipo IV no quarto dia, hemidesmossomos no sexto dia, e colágeno tipo VII no oitavo dia. Entretanto, as fibrilas de ancoragem não são equivalentes às da pele normal até um ou dois anos após a lesão.
       O colágeno tipo VII, ao lado do tipo IV, é um dos principais componentes das fibrilas de ancoragem que estabilizam a membrana basal da derme, sendo considerado um equivalente do ancestral comum dos colágenos fibrilares (I, II, III, V e XI). Sua importância pode ser inferida pela instabilidade da membrana basal observada em pacientes com epidermólise bolhosa distrófica, patologia freqüentemente associada a mutações do gene do colágeno VII. A deposição precoce do colágeno VII pode ter importância na modulação do comportamento celular e interações da matriz responsáveis pelo fechamento de úlceras. A síntese e incorporação de colágeno VII às fibrilas de ancoragem é provavelmente pré-requisito para a síntese de membrana basal estável. A síntese de colágeno VII persiste por alguns anos após o fechamento das lesões, indicando a remodelagem tardia da membrana basal em regiões aparentemente quiescentes.
       Os lípides superficiais do manto hidro-lipídico são provenientes de duas fontes, secretados pelas células epidérmicas ou pelas glândulas sebáceas. Queratinócitos provenientes de migração lateral não formam a camada granular que elabora os lípides epidérmicos por período de dois meses ou mais. Quanto ao número de glândulas sebáceas, haverá diminuição ou mesmo ausência tanto em lesões de espessura parcial quanto em áreas enxertadas, especialmente após enxertos em malha, reforçando a necessidade de hidratação tópica permanente.
       Na pele normal, cada melanócito da camada basal é responsável pela distribuição de melanossomos, organelas contendo a melanina produzida, a aproximadamente 36 queratinócitos vizinhos. Esta unidade melanócito/queratinócitos correspondentes é chamada de unidade melânica epidérmica. A principal causa das alterações pigmentares durante e após o processo de reparação tecidual é a dissolução da unidade melânica epidérmica e o comportamento diferenciado das células envolvidas na re-epitelização. Os queratinócitos reagem à lesão com aumento do número de mitoses e migração lateral em lâmina até o fechamento da ferida. Os melanócitos aumentam menos sua taxa de mitoses, já normalmente mais baixa, seguindo os queratinócitos com algum atraso, e demorando mais a atingir o centro da lesão. O número de melanócitos em áreas doadoras de enxertos cutâneos de espessura parcial é menor que na pele sã, mesmo após alguns anos de evolução. Por outro lado, enxertos antigos podem apresentar maior número de melanócitos que a área doadora original. Mais importante que o número de melanócitos, entretanto, são as alterações morfológicas e funcionais sofridas pelos mesmos durante o processo da reparação tecidual, responsáveis pela alteração da coloração da pele.
       Até a restauração adequada da função de barreira, dermatites de contato por maior susceptibilidade a agentes irritantes são comuns. Após um ano, por outro lado, a densidade de células de Langerhans encontra-se aumentada, e falhas na interação entre estas células, os queratinócitos e as células T parecem reduzir a eficiência da sensibilização alérgica, podendo aumentar a tolerância a alérgenos aos quais a pele possa ser exposta, em fenômeno ainda não bem elucidado.
       A produção exagerada de matriz extracelular pelos fibroblastos da área em cicatrização, possivelmente sob a influência de níveis elevados anormalmente persistentes de citoquinas fibrogênicas, como o TGF-β, seria uma das causas das cicatrizes hipertróficas. Segundo à microscopia observa-se desorganização das fibrilas de colágeno, diferente da cicatriz normal, na qual as fibrilas encontram-se dispostas paralelamente à superfície.
       Nas cicatrizes hipertróficas as fibrilas de colágeno são freqüentemente arranjadas em espirais ou nódulos. Os nódulos podem medir de 7 a 8mm de profundidade por até 20mm de extensão. As áreas nodulares de cicatrizes hipertróficas apresentam fibrilas colágenas relativamente mais finas e mais espaçadas entre si, indicando presença de matriz inter-fibrilar mais abundante, com ausência de estruturas supra-fibrilares (fibras e feixes).
       Para a maioria dos autores, a realização de enxertia inibe a contração cicatricial do leito receptor. Entretanto, o padrão da deposição de colágeno no leito de enxertos e a força mecânica dos mesmos foram pouco estudados. JORGENSEN et al. (1993) verificaram que, tardiamente, a extensibilidade de enxertos é quantitativamente semelhante à de incisões em resposta às mesmas forças. Por outro lado, incisões realizadas em animais que simultaneamente foram submetidos a enxertos cutâneos à distância apresentam força tênsil menor, após 21 dias, quando comparados a animais submetidos apenas às incisões. Este achado sugere que fatores sistêmicos de inibição da cicatrização encontram-se presentes quando da realização da enxertia, afetando outros sítios com diminuição da força tênsil.
       O colágeno é responsável pela força tênsil dos tecidos conectivos, enquanto as glicosaminoglicanas são as principais responsáveis por outras propriedades físicas, como hidratação cutânea, turgor e elasticidade. Estudos com análises químicas de cicatrizes hipertróficas demonstraram poucas alterações no conteúdo absoluto de colágeno, porém níveis significativamente mais altos de ácido urônico e hexosaminas, medidas do conteúdo de glicosaminoglicanas. Proteoglicanas têm, além dos efeitos diretos nas propriedades dos tecidos conectivos, efeitos indiretos na organização e morfologia das fibrilas colágenas. Esta organização, quando alterada, pode ser em parte responsável pela qualidade rígida e inelástica das cicatrizes hipertróficas.
       A distribuição do ácido hialurônico, por exemplo, varia em cicatrizes maduras, hipertróficas e quelóides. Técnicas imunohistoquímicas demonstram, na pele normal, a presença de camada homogênea e espessa de ácido hialurônico na derme papilar, com cerca de três a quatro vezes a espessura da epiderme. Na cicatriz madura, a espessura desta camada é aproximadamente igual à da epiderme. Já na cicatriz hipertrófica, a camada de hialuronan restringiu-se a fina camada abaixo da membrana basal, enquanto no quelóide nenhum acúmulo homogêneo foi identificado na derme papilar.
       Outra análise demonstrou 30% menos hidroxiprolina (e, portanto, menos colágeno) na cicatriz hipertrófica quando comparada à pele normal. O conteúdo de glicosaminoglicanas, por outro lado, está aumentado 2,4 vezes, fator provavelmente relacionado ao aumento em 12% de água. Cicatrizes “maduras”, ou seja, com mais de um ano segundo estes autores, apresentam apenas leve aumento nestes dois parâmetros, porém não significativo. Quanto à composição das proteoglicanas, observa-se dramática redução no conteúdo de decorina nas cicatrizes hipertróficas, correspondendo a apenas 25% dos níveis encontrados na pele sã, enquanto biglicana e versicana, componentes presentes em menor quantidade na pele normal, são os principais componentes da matriz da cicatriz hipertrófica, com aumento de seis vezes, na série de 6, ou de 10% para 30% segundo.
       Estes desequilíbrios do metabolismo das proteoglicanas não são observados nas cicatrizes maduras, não patológicas. A maturação das cicatrizes pós-queimaduras pode ser dependente do retorno às proporções relativas de proteoglicanas características da pele normal 6  A diminuição da decorina pode ser causa direta da desorganização das fibrilas colágenas, ou alterar a sequestração e neutralização de fatores de crescimento, como o TGF-β, que poderiam resultar nas alterações do colágeno observadas. O TGF-β é encontrado em cicatrizes hipertróficas e quelóides, não sendo detectável na derme normal. Já foi relacionado a fibrose hepática, pulmonar, renal, esclerodermia e quelóides. Em culturas de fibroblastos, além de estimular diferencialmente a expressão de proteoglicanas, ou seja, aumento de versicana e biglicana e diminuição de decorina, causa aumento no tamanho das cadeias de glicosaminoglicanas, outra característica de cicatrizes hipertróficas. Estimula, ainda, a formação de colágeno e fibronectina, e inibe a colagenase. A acumulação de suficiente quantidade de decorina pode ser um dos fatores envolvidos na maturação do processo cicatricial.

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